domingo, 29 de outubro de 2023

Charlot, 'Tempos Modernos' e Inteligência Artificial

Sempre que a actividade humana, em vários domínios, foi interceptada e executada por equipamentos e métodos inovadores de produção, nomeadamente máquinas industriais, verificaram-se conflitos entre artesãos e operários, por um lado, e os interesses de empresários expostos a desafios de concorrência e produtividade do mercado, por outro.

A Revolução Industrial do século XVIII, de que Inglaterra foi pioneira, demonstrou a luta entre a manufactura e a maquinofactura, acentuada por baixos salários, jornadas de trabalho longas e condições insalubres das fábricas, fenómenos que atingiam os trabalhadores. Em contrapartida, os donos das fábricas, graças a inovações como a máquina a vapor e o tear mecânico, extraiam consideráveis benefícios.

Os atritos entre homens e máquinas estenderam-se no tempo. Charles Chaplin com o filme classificado como uma das suas obras-primas, 'Tempos Modernos', evidencia esses atritos e suas consequências sociais, nos 1930, tempos da histórica Grande Depressão. O posicionamento crítico de Chaplin em relação ao capitalismo, levaria, no macartismo, à sua expulsão dos EUA, assim como à confiscação de todos os seus bens pelo Estado Norte-Americano.

As modificações causadas pelas revoluções na indústria nunca foram pacíficas do ponto de vista económico social, como sinaliza o filme 'Tempos Modernos'.

Na actualidade, a ciência, mais electrónica, tecnológica e sustentada em novos saberes da concepção e uso de algoritmos, está a gerar a Inteligência Artificial como poderoso veículo de transformação e inovação em todas áreas do conhecimento e convivência humanos. Hoje, no jornal ‘Público’, em artigo de Karla Pequenino, é revelado que “Algoritmos podem aprender a pensar mais como humanos”.

A autora refere-se à meta-aprendizagem por composição (Meta-Learning for Compositionality, em inglês), salientando nomeadamente que:

"Há novas estratégias para pôr sistemas de inteligência artificial (IA) a pensar mais como seres humanos, ao desenvolver algoritmos capazes de conectar diferentes aprendizagens. No fundo, a usar algo que aprendem num contexto noutro completamente diferente. É algo que os seres humanos fazem instintivamente…"

Todos estes avanços, se forem desenvolvidos a favor das condições da vida humana e de virtuoso progresso científico em diversas áreas, todos estes avanços – dizia – são dignos de ser saudados. Todavia, é de sublinhar que, mesmo do lado de cientistas há algumas reservas, porque a Inteligência Artificial também é potencial portadora de riscos que podem ir desde questões imediatas, como a violação da privacidade, o preconceito algorítmico, a deslocação de postos de trabalho e as vulnerabilidades de segurança, até preocupações a longo prazo, como a possibilidade de criar uma IA que ultrapasse a inteligência humana e se torne incontrolável.

O futuro, a que certamente não assistirei, dará efectiva resposta ao desafio de benefícios e riscos para a espécie humana e a natureza, lançado pela IA.


quinta-feira, 26 de outubro de 2023

As declarações de Guterres e o "supremacismo" de Israel

 

Faixa de Gaza

Trabalhei e tenho relações amigáveis com vários judeus. Também me cruzei, na actividade profissional, com muçulmanos, em especial do Magreb, mas jamais encontrei qualquer palestiniano. 

A reprovação e a revolta sustentam a minha posição a respeito do hediondo ataque do Hamas aos kibutz do Sul de Israel. Saldou-se pela morte de cerca de 1.400 israelitas, alguns deles bebés cruelmente decepados, e ainda por mais de 200 reféns que os terroristas levaram para a Faixa de Gaza, tendo até ao momento libertado apenas 4 mulheres.

Por influência da personalidade do meu pai, considero-me humanista. Todo o tipo de violência e morte contra humanos, seja em guerras convencionais ou meras operações que resultam em massacres, me fustiga o espírito, com enorme sofrimento. Quem me conhece bem, e não são muitos, sabe o que penso e a mágoa que me atinge perante tragédias do género daquelas que estamos a ver, a toda a hora, nos canais televisivos.

É impossível ser selectivo em função da nacionalidade ou orientação religiosa das vítimas. Um trecho do artigo de Alexandra Lucas Coelho no 'Público' de hoje resume as razões pelas quais sofro:

"Urge agora que 2,3 milhões continuam sob bombas, com fome, sede, milhares no chão de hospitais em colapso, operados sem anestesia. 6500 mortos, 2000 dos quais crianças."

ALC, como eu, defende Guterres no tocante às declarações que fez no Conselho de Segurança da ONU. Crítica a prepotência de Israel que, através de dois políticos, pediram a demissão do Secretário-Geral. O Secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, ao lado de Guterres, também defendeu uma pausa humanitária no confronto, a fim de se poder valer com água, alimentos e medicamentos aos palestinianos que, devido a bombardeamentos de Israel, vivem em condições desesperantes.

Para os "supramacistas" israelitas, ignorar as afirmações de Blinken é o cinicamente recomendável. Todavia, escorraçar da ONU para fora o filho de um país menor é fácil e demonstra muita coragem de um país que se tem na conta de potência, com os seus 9,5 milhões de habitantes. Na altura da Declaração de Balfour, em 1917, no território atribuído a Israel viviam 35.000 judeus.

A História de Israel é uma longuíssima narrativa que conta a vida milenar do povo judaico, incluindo a proposição do sionismo por Theodor Herzl, no final do século XIX, a citada Declaração de Balfour em 1917, a intervenção de Winston Churchill como Ministro das Colónias Britânicos (*), as conversações entre Chaim Weizmann, sionista, e Lloyd George, PM do Reino Unido até à fundação do Estado de Israel, sob o coimando de David Ben-Gurion, um estadista de que Netanyahu é o oposto.

(*) O livro "Churchill and the Jews 1900-1948", de Michael J. Cohen é de leitura obrigatória para se saber e compreender a criação do Estado Judaico. 

 

terça-feira, 24 de outubro de 2023

TAP: lucro de 203,5 milhões até ao fim do 3.º trimestre de 2023



Confesso que a TAP, e tudo á volta desta companhia, merece-me especial interesse. Quase 30 anos da minha vida, devido à natureza de actividades profissionais, viajei para e de vários países estrangeiros, em especial africanos e europeus. A minha companhia preferida sempre foi a TAP, excepto, obviamente, para países na qual a mesma não dispunha de rotas - Argélia, por exemplo, que cheguei a visitar 15 vezes por ano.

Os voos realizados, maioritariamente em executiva, permitiram-me conhecer figuras públicas. Tomo a liberdade de destacar as conversas, lado a lado, com Bob Marley (Londres/Lisboa) e Airton Senna (Lisboa/Marselha). Por triste ironia, ambos vieram a falecer dois anos e tal após ter conhecido e conversado com eles - mais de 2 horas com cada um.

Estes dois episódios, e outros do género, serviram-me de alerta para a importância do muito agora propalado HUB de Lisboa. Bob Marley, por exemplo, viajava, na ocasião, de Londres para Luanda, via Lisboa, na TAP. Em Angola, seguiria em companhia africana para o Zimbabwe, terra dos seus antepassados - ele tinha, como é sabido, a nacionalidade jamaicana.

O jornal 'Público', nesta notícia, anuncia que a TAP até Setembro último, atingiu um lucro recorde de 203,5 milhões. Como contribuinte, português e cliente, fiquei naturalmente satisfeito. Todavia, ainda foi maior a satisfação, ao saber que a causa de tal proveito não foi produto de qualquer alienação ou operação extraordinária. Com efeito, resultou da actividade básica da sociedade. Vários exemplos: as receitas totais aumentaram 29,7% para 3164M de euros; o número de passageiros registou mais 19,5% em relação a 2022 e, finalmente, a taxa de ocupação média das aeronaves aumentou de 79,5% para 81,9%.

Conquanto os resultados antes referidos sejam muito bons, atendendo até ao panorama da aviação internacional, em minha opinião, os números dos relatórios e contas não devem ser usados como único argumento nas vantagens económicas para o país da TAP. A preservação do antes referido HUB de LIsboa é igualmente essencial para os benefícios da nossa economia. O elevado número de passageiros estrangeiros que utilizam Lisboa em trânsito para destinos africanos e da América do Sul (Brasil em destaque) é gerador de proveitos para outros operadores. Inclusivamente, e eu apercebi-me de muitos casos quando viajava, o trânsito em Lisboa significava a permanência e visita à cidade durante 3/4 dias.

Não tenho vínculos partidários de qualquer espécie. Cada vez estou mais distante de uma classe política que, na generalidade, é marcada por incompetência, amiguismo e corrupção. Respeito o General Ramalho Eanes, felizmente ainda vivo, assim como tive admiração pelo Dr. Jorge Sampaio. Os restantes políticos, sobretudo os actuais, provocam-me repulsa. Desinteressei-me da política de tal ordem que ou voto no que considero o mal menor, ou em certas ocasiões voto em branco.

Para finalizar, apelo aos políticos que mantenham na posse do Estado uma participação no capital da TAP, assegurando, em simultâneo, condições para a continuidade do desenvolvimento do HUB. O novo aeroporto de Lisboa espera há 50 anos. Isto só pode é possível em terras que têm sido governadas por políticos de terceira ordem. 


segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Hannah Arendt e o conflito israelo-palestiniano

 


Hannah Arendt





Tenho um fascínio sobre a vida e a obra Hannah Arendt. 

Alemã e judia de nascimento, em 1941 esteve detida num campo de concentração nazi, próximo de Paris, de onde se evadiu para Portugal. Curiosamente, residiu em Lisboa, no n.º 6 da Rua da Sociedade Farmacêutica, não muito longe do Hospital de Santa Marta. Da capital portuguesa, emigrou para os EUA, apátrida na primeira fase, mas posteriormente nacionalizada estadunidense.

Na carreira universitária e na actividade intelectual, teve alguns comportamentos controversos que, sobretudo, foram criticados por membros de comunidades judaicas. A sua iniciação no estudo da filosofia, foi impulsionado pelo filósofo alemão Martin Heidegger, com quem manteve um romance; homem conectado com o partido nazi alemão. Sob fortes críticas de comunidades judaicas, o romance extinguiu-se, mas ainda assim a relação, a nível de investigação e estudos académicos, manteve-se e Heidegger teve influência e Hannah Arendt difundiu as ideias do estudioso alemão nos EUA.

No início da década de 1960, ao serviço da revista The New Yorker foi enviada para Israel para observar e comentar o julgamento de Adolf Eichmann, militar nazi capturado pelos Serviços Secretos de Israel ao fim de 20 anos. A reportagem em Israel deu origem à concepção e publicação do livro "Eichmann em Jerusalém' que suscitou enorme polémica nas comunidades judaicas.

Hannah Arendt cria o conceito "banalidade do mal", inspirada pelas teorias do "mal radical" de Kant. O "mal radical", na teoria de Kant que Arendt seguiu, não é uma designação por ser intenso, mas por estar enraizado em seres humanos que o praticam (radix em latim significa raiz). O "mal radical" fundamenta-se no ódio e caracterizou os comportamentos de políticos como Hitler. Himmler e Goebbels.

O "mal banal", na avaliação de Hannah Arendt, não se baseia em si próprio. Em suma, auto-classificada então como teórica política, Arendt aderiu à ideia, utilizada por Eichman, de que se limitou a executar acções por ordens superiores e sem noção de que estava a perpetrar actos de antissemitismo.

Nestas circunstâncias, Hannah Arendt não analisou o comportamento de Eichmann - e de outros, naturalmente - sob o enviesamento moral mas sim político. Considerou que ele era tão medíocre que seria incapaz de ser um monstro. Eichmann era apenas uma pessoa buscando ascensão por meio de um sistema totalitário e teria entrado para a Gestapo para ganhar dinheiro.

A obra de Hannah Arendt, intensamente citada por distintos autores, como Tony Judt, Martin Gilbert e outros académicos de prestígio, é muito vasta e de imenso valor intelectual. Em síntese, tenho a certeza que, como cidadã do mundo mais do que judia, reprovaria o horrendo ataque do Hamas, mas sinto enorme curiosidade em saber o juízo que ela formaria sobre o tipo de retaliação que Benjamin Netanyahu e seus acólitos da Defesa de Israel estão a planear e a executar sobre o povo palestiniano. Danos colaterais de uma guerra é um efeito inevitável mas limitado; porém, quando o colateral se transfere para objectivo central, há claramente um beligerante a incorrer em crimes de guerra definidos pelas Convenções de Genebras de 1949 e consequentes Protocolos.

Fico pela pergunta, porque quem poderia responder já não está entre os vivos.



















quinta-feira, 12 de outubro de 2023

O OE 2024, rendimentos, economia e números da OCDE

OCDE


A propósito da discussão do OE 2024 e da distribuição de rendimentos previstos no mesmo, tenho lido, ouvido e visto definições de classe média. Alguns comentadores e críticos remetem para a definição da "Wikipédia", a qual, no meu parecer, é uma versão abstracta, sociológica e pretensamente universal.  A definição da "Wikipédia" é exactamente a seguinte:

"Classe média é uma classe social presente no capitalismo moderno que se convencionou a tratar como possuidora de um poder aquisitivo e de um padrão de vida e de consumo razoáveis, de forma a não apenas suprir suas necessidades de sobrevivência como também a permitir-se formas variadas de lazer e cultura..."

A adopção deste conceito aos países do capitalismo moderno torna-se em teoria demasiado abstracta e até imprecisa, visto que engloba uma variedade de países distintos e de estados de desenvolvimento económico diferenciados, com consequentes resultados ao nível da desigualdade de rendimentos e perfis de classe social de cada país.

O mais recomendado e seguro para avaliar e classificar classes sociais e rendimentos destas é utilizar a tabela de 'salários médios da OCDE', esta, sim, define com precisão o segmento de classe média de 38 países e compara-os. 

Na tabela em causa, ver aqui, verificar-se-á que, entre o tal conjunto de 38 países da OCDE, praticamente equivalente à Turquia, Portugal tem o 8.º salário médio mais baixo da OCDE em 2022 (30006,68 euros anuais). No primeiro lugar está a Islândia, com 74704,62 euros, em segundo o Luxemburgo com 73611,40 euros. Estes números traduzem, entre outros factos, que o salário médio português corresponde a 40,17% do país líder, Islândia.

A situação impõe que políticos e jornalistas deixem de reflectir sobre o conceito de classe média, por se tratar de um tema irrelevante para a vida dos portugueses, quando debatido sem a análise e avaliação dos números. O que os dados do quadro da OCDE revelam é que, do ponto de vista económico e social, somos dos países mais atrasados no seio da citada organização.

Descontada a nefasta ditadura salazarista, com a lei do condicionamento industrial e a rejeição do Plano Marshall, 50 anos de democracia não foram aproveitados para um desenvolvimento económico-social substantivo e sustentado. As responsabilidades do atraso propagam-se por todos os governos da democracia, desde a era de Cavaco Silva a António Costa. Os números não enganam.