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Mário Soares |
Vivi até aos vinte e nove anos em ditadura. Sob a asfixiante perseguição da
PIDE. Condicionado por outras entidades e métodos autoritários. Por excesso de
malvado requinte despótico, impuseram-me inflexíveis restrições à liberdade.
Algumas, diga-se à distância, a roçar o ridículo. Um dos episódios
estrambólicos por mim vivido relacionou-se com um livro, em papel-bíblia,
comprado à socapa, como muitos outros, na velha – não a actual – Livraria Barata
na Avenida de Roma. Tratava-se da obra poética completa de Frederico Garcia
Llorca. Um “bufo”, vendo o livro sobre a minha mesa no Café do Império, perseguiu-me
a mim e ao meu grupo. Junto ao mercado do Chile, escondemo-nos. Vimos o reles “bufo”,
desorientado, à nossa procura. Acabou por desistir.
Todas estas histórias e passagens de vida demonstram, de facto, a
impossibilidade de ser livre no tempo do Salazarismo severo e maldito. Porém, a
estas histórias juntam-se outras próprias do país mais atrasado da Europa que
eramos (excluídas as colónias), em termos de degradada vida humana.
Lembro-me dos meus camaradas da primária, Escola 15 de Lisboa, que viviam na “Quinta dos Peixinhos” (onde hoje fica a Escola Patrício Prazeres). Víamo-los andrajosos, descalços, a tiritar de frio e fome, a caminho das aulas. Eu e outros, sem sofrer de idêntica carência, repartíamos com eles os lanches da manhã.
Lembro-me dos meus camaradas da primária, Escola 15 de Lisboa, que viviam na “Quinta dos Peixinhos” (onde hoje fica a Escola Patrício Prazeres). Víamo-los andrajosos, descalços, a tiritar de frio e fome, a caminho das aulas. Eu e outros, sem sofrer de idêntica carência, repartíamos com eles os lanches da manhã.
A idade foi avançando e a Guerra Colonial também. Tive amigos mortos em
Angola. Em especial, lembro-me do Luís que, pelo relato de outro amigo, soube ter
sido morto numa emboscada. Quantas vidas foram ceifadas, desta ou daquela
maneira, na Guerra Colonial? As estatísticas dizem que mais de 10.000, mas não
incluem os estropiados e muitos outros que, do ponto de vista psíquico e social,
ficaram diminuídos para a vida.
Propositadamente descrito com pormenor, esteve foi o Portugal da minha
infância, da minha adolescência e até parte adiantada da minha juventude.
Terminou em 25 de Abril de 1974. Milhões pelo país inteiro, sobretudo no 1.º de
Maio que se lhe seguiu daí a dias, coloriram as ruas das cidades e saudaram a
chegada da Democracia.
Mário Soares foi dos políticos portugueses que compartilhou da euforia com
o povo. Juntamente com Álvaro Cunhal. A despeito do meu interesse pela
política, jamais me filiei em qualquer partido ou corrente partidária. Nunca
fui militante ‘socialista’ ou ‘soarista’, nem ‘comunista’ ou ‘cunhalista’.
Todavia, e pela luta empreendida para o sucesso da democracia em Portugal, nesta
hora difícil que Mário Soares vive aos 92 anos de vida, não posso, nem devo
deixar de expressar a minha solidariedade à família e votos da recuperação
possível ao homem e político que respeito. Como qualquer outro, cometeu erros,
mas do desempenho da sua carreira, Portugal extraiu benefícios e o país progrediu
– claro que, nos complexos tempos actuais de domínio dos neoliberais e da
xenofobia, há regressões e crises que atingem o mundo e multiplicam a pobreza.
Não há muitos anos ainda vi Mário Soares a protestar contra estas perversões no
Mundo na Avenida da República. Lutou até ao fim!
Considero reles, canalha, infame, ignominioso e
aviltante que certas vozes se levantem em insultos contra o último dos civis, dos pais
veteranos da Democracia Portuguesa. Gente abjecta e ordinária, incapaz de
respeitar um adversário político, ao menos em fase crítica de uma
longa vida de luta.
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