domingo, 15 de outubro de 2017

Marcelo afectuoso e volúvel

O narcisismo é um traço de personalidade muito comum em políticos. Cavaco Silva, da governação à Presidência da República, usou e abusou desse estilo, acrescentando-lhe uma contranaturalidade repugnante. Sempre hirto e rígido, física e emocionalmente, emproado na comunicação e dissimulado em gestos e sorrisos esfíngicos, chegou ao fim do mandato mais impopular de todos os presidentes do regime democrático.
Dito isto, a probabilidade do seu sucessor ter a simpatia das massas era altíssima. Com Marcelo Rebelo de Sousa (MRB), a probabilidade converteu-se em realidade. Inteligente, culturalmente superior, hábil comunicador e excelente intérprete dos sentimentos da alma portuguesa, na campanha eleitoral e no exercício do cargo, Marcelo recolocou a PR no coração dos portugueses. Onde passa Marcelo passa o afecto.
A ‘geringonça’, termo que Vasco Pulido Valente inventou no vaticínio de que a cangalhada soçobraria no dia seguinte; a ‘geringonça’, dizia eu, mediante a política de reversão de rendimentos, tornou-se em instrumento útil para Marcelo. A alegria assim como a dor são duas componentes do mundo dos afectos em que o PR adora mergulhar. O pior é que ele também sabe ser volúvel.
Entretanto, surgiram dois obstáculos de monta para a governação tranquila e de sucesso de António Costa: o incêndio de Pedrogão e o furto de armas de Tancos. Deixemos o caso de Tancos – denunciei oportunamente o desmazelo aqui – e fixemo-nos no incêndio de Pedrogão.
Do relatório da Comissão Técnica Independente (CTI), extraem-se conclusões acerca de causas e efeitos do dramático fogo de Pedrogão e concelhos limítrofes. Algumas dessas conclusões são, naturalmente, de carácter político e atingem áreas ministeriais da Agricultura e da Administração Interna, a primeira mais no domínio da prevenção e gestão da floresta e a última na actuação incapaz da Autoridade Nacional da Protecção Civil (ANPC).
Publicado o relatório, Marcelo não tardou a iniciar o processo de responsabilização da Administração Pública, ao declarar em nota escrita:
“ […] Portugal aguarda com legítima expectativa as consequências que o Governo irá retirar de uma tragédia sem precedente na nossa história democrática”, ´Público’.

Marcelo poderia ter também a legitimidade para exigir ao Governo que assuma responsabilidades. Perdeu-a, contudo, ao afirmar na noite mais trágica do incêndio que nada mais podia ter sido feito, como sublinha Pedro Santos Guerreiro na edição de ontem do “Expresso”. O PR estava, deste modo, igualmente submetido ao escrutínio da Comissão Técnica Independente.
O Governo de António Costa errou, ao prolongar as políticas desastrosas da gestão florestal das últimas décadas e, sobretudo, fazer nomeações partidárias e até de um falso licenciado, tipo Relvas, para dirigir a ANPC. Com a incompetência do comando local, assim como as deambulações desse comando no terreno, foi afrontado o supremo direito da população, parte atingida até à morte, à protecção em situações de emergência graves.
Há que esperar que, da tragédia, resultem políticas integradas de prevenção e combate a incêndios, executadas no terreno por uma estrutura capaz de mobilizar e organizar a defesa da floresta portuguesa que, neste ano de seca severa, ainda está a ser pasto de incêndios descontrolados.

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