As frases célebres constituem um ponto de confluência de homens de perfil cultural, profissional e intelectual bastante distintos. Comungam, portanto, dessa característica, deixar para a posteridade expressões verbais que a História jamais esquece, sobretudo no caso das elites - valham estas o que valerem.
Das digressões pelo País de figuras de Presidente da República, citemos, ao menos, dois exemplos:
Américo Tomás, nos anos sessenta:
«...É uma terra [Manteigas]bem interessante, porque estando numa cova está a mais de 700 metros de altitude...»
Aníbal Cavaco Silva, nos anos oitenta:
"Só fui fazer a rodagem" (1985)
Integrada no processo democrático pós-25 de Abril, é declaração relevante para a nossa História recente.
O despretensioso inquilino da marquise da Travessa do Possolo, num belo dia, com a esposa Maria Aldegundes, resolve deslocar-se ao Congresso do PSD de Maio de 1985, para, dizia ele e eu não acredito, fazer apenas a rodagem do Citroën BX que, então, havia adquirido.
João Salgueiro e Rui Machete disputavam a liderança do PSD, à época. De rompante, Cavaco e sua esposa entraram, a alta velocidade com o Citroën, casino da Figueira adentro. A estonteante marcha acabou com Cavaco Silva na presidência do Partido.
Sublinhe-se que se tratou de atitude jamais programada e ainda muito menos intencional do acesso ao poder. Calhou, pronto. Tanto mais que o homem nem sequer é, jamais foi, político e, a despeito do espírito anti-político, acabou com a vida virada do avesso durante 32 anos - dois como ministro das finanças de Francisco Sá Carneiro (1980-1981); dez como PM (1985-1995); e finalmente mais dez como PR (2006-2016).
Portanto, no próximo ano, veremos o homem pelas costas. Partirá um recordista. É o político com mais anos em actividade em democracia e proprietário do Citroën que, mesmo abatido, continua em rodagem. Por sua vez, acumula resultados imbatíveis de falta de popularidade. Em meados de Fevereiro passado tinha um saldo negativo de -1,2%.
Portugal e a sua malta desempenham a preceito o papel da Cornucópia: na mitologia grega significava 'Corno da Abundância' - e como Cavaco, ilustre conhecedor do seu rebanho, ao volante do Citroën, mesmo na hora da partida, define perante os seu súbditos o abundante perfil de presidente a exigir ao seu sucessor:
"... Conhecimento de matérias de defesa - [por que não ataque?] -, de política externa e uma formação, capacidade e disponibilidade para analisar os dossiers relevantes para o país"
Com muito mais cinismo do que os aprendizes da governação, Cavaco, no que toca ao desemprego e à emigração jovem, deixa mais esta sublime mensagem:
"... obrigando a que se estendesse a presença de Portugal a outros países."
Confesso que, extasiado, esta tirada deixou-me prostrado. Cavaco ficará, pois, na História como o símbolo divino da Portugalidade no mundo. Das Ilhas Faroé a Pequim, passando por essa Europa, América do Norte e do Centro, Brasil, Praia, Bissau, Angola, Moçambique, Goa, Macau e Timor, qualquer português, independentemente de ser Espírito Santo ou Coelho, estará sob a protecção da divindade Cavaco, esteja ele no Templo do Possolo ou naquele outro da Coelha, em convívio com o rubicundo amigo Catroga.
Cavaco é um sábio. Ou, dito de outra forma, sabe-a toda...
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